Por: Igor Savenhago | Ribeirão Preto (SP)
Foi morando na Austrália que Rafael Correa Trajano Borges teve a convicção sobre o que queria fazer da vida. Do outro lado do mundo, conheceu uma família que trabalhava com alimentos orgânicos há quatro gerações. Aqui no Brasil, em Brodowski (SP), os parentes já tinham gado de leite e café produzidos sem agrotóxicos. Mas o conhecimento adquirido lá fora trouxe a certeza de que era preciso ouvir o coração.
“Eu sempre quis buscar sustentabilidade e valorizar a história da propriedade”, conta o produtor. Uma história com mais de 200 anos. Esse é o tempo em que a fazenda está nas mãos da família. Borges é da quinta geração. “A história do meu bisavô, principalmente, me tocava muito. Ele mantinha outras 130 famílias morando aqui e produzindo de forma sustentável. Não se falava muito sobre isso na época, mas já era uma proposta com preocupação ambiental”, afirma.
Quando Borges tinha 18 anos, o pai faleceu e a propriedade foi dividida. Na parte que coube a ele, procurou dar sequência a essa ideologia. Mas veio uma crise de preços na pecuária leiteira bovina, o que o obrigou a pensar em alternativas. Borges decidiu, então, comprar um rebanho de búfalas e montar um pequeno laticínio.
“Em 1994, tivemos uma grande cheia no Rio Pardo e oito búfalas não conseguiam voltar para casa. Quase desisti da atividade. Eu havia ido de caiaque para trazê-las. Foi quando vi umas das cenas mais lindas da minha vida. As búfalas indo para o curral carregando os bezerros nas costas. A partir dali, como elas não haviam desistido dos filhos, eu disse que não ia desistir delas”, conta.
Borges é um exemplo de como os produtores de orgânicos do estado têm buscado diversificar a oferta e, com isso, mudar a percepção das pessoas sobre esse mercado. Pesquisa feita em 2023 pela Associação de Promoção de Orgânicos (Orgânicos), com mil pessoas entrevistadas, apontou que 42% relacionavam orgânicos principalmente com verduras, legumes e frutas.
Esse é um dos fatores que fazem Borges considerar a muçarela orgânica de búfalas, que produz há 21 anos, como parte de uma trajetória de resiliência. O outro é ter conseguido manter um propósito em uma região dominada e rodeada pela cana-de-açúcar.
Embutidos
Mas a ousadia não parou por aí. Sete anos atrás, a Gondwana Orgânicos, como foi nomeada a empresa que funciona na fazenda, diversificou a produção. Além dos queijos, Borges passou a oferecer embutidos feitos com a carne de uma raça de porco preto, batizada também de Gondwana. “Essa raça foi desenvolvida aqui mesmo na fazenda, por meio de melhoramento genético”.
Com era uma novidade, ele encontrou dificuldades para escoar o produto. A solução foi processar ali mesmo. Para isso, Borges foi apresentado a um mestre italiano, Pietro Starvaggi, que desenvolveu receitas de salames, presuntos crus, linguiças, preparos com pernil defumado, panceta, copa, entre outras iguarias. Tudo orgânico.
A propriedade mantém um plantel de 500 búfalas e 350 porcos, em um cenário com 12 nascentes de água preservadas e que, em breve, deverá ter criação de abelhas para agregar ainda mais valor biológico aos produtos. “Isso porque as abelhas são um termômetro de sustentabilidade”, diz Borges.
Há três anos, ele, que é zootecnista, a esposa, formada em Ciências Contábeis, e as três filhas abriram o lugar para visitação e degustação. “A produção orgânica é algo que, se as pessoas não tiverem no coração, não vai. É importante, também, que as nossas filhas cresçam vendo esse sistema, as dificuldades, a batalha dos colaboradores, para que possam também deixar um legado”, conclui Borges.
Crescimento
A filosofia da família ilustra o potencial de crescimento da produção sem agrotóxicos em São Paulo, que está em expansão. Segundo o Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO), o estado conta com 1.531 agricultores neste sistema. Em 2015, eles eram 1.215 — crescimento de 26% em uma década.
De acordo com a Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento (SAA), o número de municípios paulistas com alguma unidade orgânica saltou de 188 em 2015 para 302 em meados de 2021, quando foi feito o último levantamento por unidade. Isso representa quase 50% das cidades do estado. Com isso, São Paulo ocupa a quarta posição no ranking nacional, composto por cerca de 25 mil produtores e que é liderado pelo Paraná.
Para estabelecer diretrizes de incentivo à agricultura orgânica paulista, foi estabelecida a Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPO – Lei 16.684/2018), da qual o principal instrumento é o PLEAPO – Plano Estadual e Agroecologia e Produção Orgânica –, que visa definir programas, ações e metas a serem renovadas pelo governo. “Com ele, SP reforçou o incentivo aos programas de pesquisas ligadas à agricultura orgânica, como o Núcleo Regional de Pesquisa de Itararé, com batata orgânica, e de Andradina, com feijão e milho no sistema orgânico”, afirma a SAA em nota.
A primeira edição do plano foi publicada em 2023. Além da agricultura orgânica, que foca na produção em escala sem o uso de agrotóxicos, o objetivo é estimular a agroecologia, que se caracteriza por produções diversificadas em um mesmo espaço, de acordo com o perfil biológico do solo e cuja principal preocupação é a conservação da biodiversidade do ambiente.
No ano passado, conforme a secretaria, 564 agricultores familiares de diferentes perfis foram atendidos por 30 equipes de extensão rural que compõem o Protocolo de Transição Agroecológica, totalizando 10.055 hectares em assentamentos, agricultura urbana e periurbana.
Óleos essenciais
No assentamento Sepé Tiaraju, em Ribeirão Preto (SP), Elenito Hemes Lopes mantém, desde 2025, um sistema agroecológico, que hoje tem 92 espécies de plantas em quatro hectares. De 26 delas, o agricultor extrai óleos essenciais. Cinco tipos — melaleuca, eucalipto citriodora, açafrão da terra, citronela e xilopya aromática — são vendidos na forma de repelentes, aromatizadores de ambientes, escalda-pés, entre outros produtos. Outros 21 vão para misturas de óleos conhecidas como sinergias medicinais usadas no combate a insônia e ansiedade e para melhora da imunidade. Todos de uso tópico.
As plantas usadas nas criações de Lopes são autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A comercialização dos óleos é feita com a marca própria Recanto do Saci em grandes feiras pelo país e em e-commerces. O agricultor também produz cúrcuma, banana desidratada, farinha de banana, rolinhos de frutas e chocolate artesanal. Só de cúrcuma, são processadas de três a quatro toneladas por ano.
Lopes é baiano, do município de Guandu, onde era músico e atuava no teatro. Os pais plantavam verduras, legumes e frutas, das quais ele ficava responsável por uma parte da produção. Após morar em Salvador e servir aos Fuzileiros Navais, resolveu voltar à cidade natal. “Neste momento, surgiu uma vontade de querer viver da terra”.
Em um retiro espiritual em Lençóis, na Chapada Diamantina, conheceu a agroecologia. Mais tarde, encontrou, em um ônibus, uma cartilha que falava sobre o trabalho de Ernst Götsch, agricultor suíço considerado o criador da agricultura sintrópica — sistema que imita uma floresta para restaurar áreas degradadas e produzir alimentos de forma sustentável. “Fiquei fascinado pela diversidade de produção em uma pequena área. Desde então, eu sonhava em ter um pequeno espaço de terra para fazer minha própria agrofloresta”, afirma Lopes.
Em 1999, foi convidado a integrar o assentamento em Ribeirão Preto. Fez graduação pela Escola Latino-Americana de Agroecologia e passou um tempo estudando na Itália, na Università degli Studi della Tuscia, onde teve contato com variações de produtos e processamentos.
Os primeiros equipamentos usados pelo agricultor foram uma carcaça de geladeira, na qual adaptou um pequeno desidratador elétrico, e uma panela de pressão, que fazia o papel de um destilador. Os recursos que arrecada com as vendas foram permitindo aprimorar a estrutura, que agora tem capacidade desidratar, de uma só vez, cem quilos de fruta e destilar cem litros de óleo. “Minha vontade é encontrar cada vez mais ferramentas que possam criar produtos a partir daquilo que tenho em maior abundância”, conclui.
Fonte: Agro Estadão